segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Fruto verde e proibido

Vai aí uma coisa de agora à noite, incompleta, como tudo. Não tem sequer um título.
O texto termina com vontade de continuar. E deve acontecer. Depois eu digo se.


Noites geralmente são terríveis, mas não esta. Tem uma tranqüilidade fina derramada, um vento perdido nas cortinas, a luz distante aquecendo tudo. Tudo.
Olhei há pouco meus olhos no espelho. Quase sorri. Quando era mais jovem era capaz de ficar horas em frente ao espelho admirando o fundo do meu olho, o jeito que meu olho tinha de me olhar. Surpreendente e perigoso isso de uma coisa ser capaz de olhar ela própria.
Sei que devia estar dormindo, mas não conseguiria. Não nesta noite. Uma sensação estranha, como a da infância antes do beijo avassalador me cobre de expectativa. Esperar o que? Esperar o que e com calma. Esperar o que o meu olho me diz sobre mim? Esperar por quem?
Vi no espelho um homem que chorou. Apenas isso, objetivamente; sem motivo, um homem chorou. As bordas dos olhos avermelhadas, uma coisa que arde e que foge: meus olhos ardem e fogem para o escuro. Tateio. Fecho os olhos queimados e perambulo cego pelo apartamento. Esbarro no guarda-louças – que tipo de homem tem um guarda-louças, me pergunto – derrubo um vaso, corto meu pé, caio no sofá e ainda deliberadamente cego, me vejo dançando na sala. Tateio, tateio, tateio e não encontro nada. Meu sangue mancha a sala, na minha cabeça vem de repente um poema.
Respiro fundo e uma sensação de preenchimento total me invade, estou vivo e morrendo. Fico parado pensando naquele antagonismo de processos, tão evidentes desde sempre e que me assaltaram de surpresa. Estou vivo, mas é como se no meu pé, por uma abertura minúscula todo o meu sangue estivesse indo embora de mim. E quando eu fosse embora de mim, em sangue e no que mais eu pudesse expelir, o que restaria? Eu, morto? Ainda seria eu o corpo sem sangue na sala? Afinal de contas o que era eu? Apenas meu sangue dentro de mim?
A dúvida ou a descoberta me faz abrir os olhos, me obriga provar de mim. Experimento um pouco de meu sangue. Descubro que tenho um gosto de ferro. Surpreendente e perigoso isso de uma coisa ser capaz de provar dela própria.
Fora para isso que não dormira? Que aviso era aquele que havia me dado inconscientemente? “ Olha só, você está vivo, mas está morrendo, por isso trate de sentir o gosto das coisas!”
O vento chega da janela aberta, me aproximo. As ruas estão cheias de vestígios da chuva. Nos últimos dias choveu tanto quanto o que se esperaria para o ano todo, e, por causa dos pequenos dilúvios, não fui trabalhar, inventei uma viagem de emergência pra curtir de casa, da minha janela, dos vidros que me protegiam, a chuva acontecendo. Chover é um fato poético.
Uma coisa que vi na infância e de que nunca me esqueci, a coisa mais bonita que eu já vi: Eu tinha oito anos e vi, a porta aberta, a água invadindo a casa. Eu estava só, cheguei mais perto da porta, molhei meus pés e depois meu corpo inteiro na chuva. Andei, passo depois de passo, sem obstáculos. Olhei para a frente, para os lados, para cima e tudo que eu via era um cinza uniforme e singular. Girei meu pescoço, tentei apurar a vista, procurar a casa, mas ela não estava mais lá. Era apenas eu, que não me via, e que portanto não existia. Existia apenas o cinza, que a partir daquela tarde passou a ser para mim a cor associada ao nada em que eu podia me transformar. No cinza da chuva eu simplesmente não existia naquela forma convencional de criança. Era o mesmo cinza que eu via no fundo de meu olho no espelho.
Na chuva eu desaparecia.
O sangue na minha boca tinha a cor viva do sangue. O vermelho e aquela noite me exigiam um outra coisa que eu não adivinhava. Apenas que aquela não era uma noite para chover. Era uma noite para sol.

3 comentários:

  1. Olá, Ronaldo.

    Li seu comentário no meu blog recém-nascido e resolvi passar aqui pra conhecer o seu espaço.

    Gostei muito do último texto que você publicou. Acredito que temos muitos gostos afins,como Clarice Lispector, por exemplo. Podemos trocar muita figurinha!

    Um abraço. E até mais!

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  2. Ronaldo,

    Seus escritos são muito bons de se ler! Virei leitora assíduo do espaço.

    Ah, e não precisa de um título, assim fica mais livre.

    Bjão!

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  3. "I look at the world and I notice it's turning
    Eu olho o mundo e percebo que ele está girando
    While my guitar gently weeps
    Enquanto minha guitarra gentilmente chora
    With every mistake we must surely be learning
    COm cada erro nós seguramente devemos aprender
    Still my guitar gently weeps
    Ainda a minha guitarra gentilmente chora."
    While my guitar gently weeps - The Beatles
    Viu o filme?
    Gostou?
    Saudades imensas na altura e no fundo!

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