segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Conto de fadas para as crianças que insistem em brincar perto do abismo

Transido pelo terror da vontade que recrudesce - aquela chuva no deserto voltou forte - resolvi postar este microconto, escrito há alguns meses, por que me pareceu fortemente emblemático.
Enxerguei nele o contraponto de minha mais recente e mirabolante decisão, na verdade uma decisão antiga, que se "monstrificou" pela força dos últimos acontecimentos. Reverbera o desejo e quando bate forte em mim, vira loucura. vira fuga. Vou seguir viagem.
Saibam todos que continuarei na minha ilha, mas logo parto para outra: Floripa.


LONGE DO CHÃO

Não demorou quase nada. Um vôo curto rumo ao chão.
Agonizou por exatos três minutos e vinte segundos, tempo que seus olhos usaram para admirar os vizinhos nas janelas. O mundo era maior e até mesmo bonito visto daquele ângulo. Dezenove andares de mundo: torre de babel: precipício arquitetônico.
Ninguém chegou antes do cachorro, que lambeu o sangue do rosto dele. Uma coisa quente sobre o rosto. Foi uma lágrima.
O homem chorou? Ou foi o cachorro? Ou teria sido uma primeira gota de chuva?
Ele já estava morto. Antes de pular, segundo ele, já estava quase completamente morto.
Era uma teoria sua: dentro das pessoas, umas partes morrem antes. A morte é uma coisa que vai ficando pronta aos poucos. A morte não é um vôo curto rumo ao chão. A morte demora muito. De modo que, antes de se atirar prédio abaixo, o homem já estava morto.
Logo depois que o corpo foi levado, começou a chover. Os vizinhos chocados voltaram a ver televisão e o cachorro atravessou tranquilamente a rua, se enfiando num beco. O sangue foi lavado da calçada. A chuva levou.
Aquela chuva, anunciada por dias e que não vinha. depois que ele morreu, caiu forte e depressa. E encantou o resto da terça-feira.
A chuva roubou o resto da noite densa e abafada.
Momentos antes o homem desejou muito que chovesse. Ali, na janela, no alto do edifício, de braços abertos, o homem desejou o rosto açoitado por gotas bravias da mais torrencial das chuvas. Do alto do prédio, a cidade toda dele. Quem o visse, reinando altivo daquele jeito, naquela epifania solitária, certamente o amaria.
Três semanas depois, uma mulher se mudou para o apartamento em que o homem morava. Ela descobriu um poema escrito na parede da cozinha, no lugar em costumava ficar a geladeira. E o poema dizia coisas bonitas e tristes. Sobre um velho, uma árvore no meio da sala e muitos pássaros.